Estas minhas últimas semanas tem sido de grande inconsciência, mas muito bonitas se vistas por um observador externo. Internamente ando como Delírio. Pensando em tanta coisa que tenho visto e ouvido e não tenho parado pra mostrar respeito ao que tem colorido musicalmente estas minhas nuvens de chuva de dispersão, que no fim sempre depois da destruição, em forma de tempestades, sempre acaba gerando uma certa áurea ordem. Como ocorre sempre após as grandes guerras dos humanos. Bom, pelo que estou vendo, a própria forma deste parágrafo mostra por si esta dispersão-caos que aguarda a tempestade.
Deixando a dispersão de lado, o que me trás aqui são as Sombras do Porvir.
Contradizendo o andar da carruagem deste blog, não, este não é mais um título maluco de outra postagem minha. Este é o belo título de um grandioso espetáculo musical composto e interpretado pela minha amiga Cuca Medina (mas claro, também acompanhada de um punhado bom de bons músicos concertistas daqui) que foi estreiado agora à noite no auditório do Instituto Goethe, basta dizer que foi um dos eventos sonoros que mais me marcaram desde que cheguei a Porto Alegre. Contarei algo a vocês, se me pagarem outra dose do absinto...
Poderia contar-lhes como um conto de fadas, até me lembrou coisas como fábulas, contos de Andersen, ou, melhor ainda, um dos melhores contos de Andersen: O Rei do Pântano: pois em hólus a tudo de extranho que acontece musicalmente há uma mensagem sutil e restauradora da natureza da compositora que conseguiu contar-me algo muito belo, que farei vocês terem um punhado da areia do gosto.
A música começa com uma peça eletroacústica que me trouxe impressões muito bonitas. Fugindo das sonoridades que são “Lugares comuns” das primeiras experiências eletroacústicas de qualquer compositor. Utilizando pitadas de sons “bizarros” encaixados de forma muito inventiva e, dando a impressão de um todo holístico e bonito o qual serviu pra me preparar atmosfericamente, para me dar o fio-condutor do concerto.
Pântano é o nome da segunda peça, a primeira com músicos no palco. Peça para quarteto vocal -abre parênteses- Aliás o trabalho da Cuca, é essencialmente vocal, já tinha ela demonstrado em outros concertos que a ouvi diferentes formas cênico-vocais muito expressivas -fecha parênteses- que começa com uma entrada canônica de gestos musicais sutis e estranhos com muito ar e utilização de notas microtonais nas vozes, sons entre um Lá # e um Si (estive com a partitura em mãos). Seguindo o fio que conduz, estes gestos estranhos globalmente fazem parte da idéia como um todo:
O fato é que pairam dentro da gente as Sombras do porvir, muitas vezes reinam. Seria melhor ignorá-las ou observá-las compreenendo-as?
O que a Cuca faz é juntar todas estas sutis bizarrices num caldeirão de pântano e fazer evaporarem coisas lindas vindas de dentro deles, como o nbonito final da peça que os músicos vão diminuindo o andamento, como se tudo fosse sumir, mas de repente um fortíssimo rico de timbres-mil surge como um bonito fogo fátuo que até os raios do Sol seriam tentados a invejar. Agora sim o pântano pode sumir-se na bruma.
A próxima foi com regente: para flauta-contralto, Cello e a Cuca cantando. Denovo uma metamorfose de timbres e remodelações de coisas extranhas modeladas e apresentadas pela Cuca como novas coisas estranhamente bonitas e misteriosas.
Seguiu com uma peça vocal com sons eletroacústicos e performance cênica – aliás, cenicamente todo concerto já estava bem programado, iluminação, pinturas-faciais em todos os músicos do início ao fim e vídeos no telão que foram com cuidado colocados em momentos certos – sendo esta a terceira vez que ouço-a cantar esta peça saio muito satisfeito em ouvi-la novamente como quem tem diante dos olhos uma nova versão de um quadro já visto de algum excelente pintor expressionista, foi a melhor de todas, a Cuca foi muito expressiva em todas as passagens desta música sombria que é um poço de técnicas vocais estendidas como assoviar e murmurar ao mesmo tempo num difícil contraponto, sons risonhos, airosos, guturais... Tudo isto me repassa como parte das coisas que fervem no caldeirão de pântano que me referi, da qual com uma ótima performance ela conseguiu tirar vapores muito bonitos de se ver.
E eis a grande peça final, para clarinete, violino, piano, dois percussionistas: um na percussão afinada e outro na percussão não-afinada – um pedaço de uma bateria como as de rock’n’roll-, mais cello e flauta, todos orientados por regente.
Foi fantástico de se ouvir, algo que emerge cintilante e vivo de dentro do pântano das sombras do porvir, algo mais vivo que a gente e mais vivo que os músicos que a tocaram muito bem.
Algo de um alto grau de refinamento musical, exploração de uma paleta tímbrica muito especial, usando técnicas diferentes em todos os instrumentos e fazendo todos os músicos cantarem (até o regente). Melhor nem me estender muito porque não vou conseguir descrever como é bonita esta peça. No desfecho, depois da cadência final, surge a primeira música do concerto e todos músicos que estavam no palco seguidos da cuca e dos cantores da “Pântano”, voltam e improvisam sobre a música eletroacústica fechando a obra com chave de pântano, melhor que de ouro.
Nos agradecimentos a compositora explicou todo o conto de fadas que criou com belas palavras, ressaltando a bonita mensagem final, algo que seria até desnecessário depois da tamanha estrutura musical que vimos erguer-se e viver ante nós, mas foram palavras muito sábias. Mas quem sabe trabalhar tendo consciência da forma musical, pensando em arte sonora, unindo intervalos com tempos em gestos e contrapontos de forma que quase chegam a fazer respirar e sair andando os gestos musicais, quem tem estas coisas, estes refinamentos musicais, como a Cuca possui e demonstra por ser um ser demasiado musical, como poucos que tive a oportunidade de conhecer, nem que ela não soubesse nem o português, eu estaria bem entendido do que presenciei.
Ouçam Cuca Medina, exalem e remodelem vossas sombras, não as aprisionem.
Um Abraço.
postscriptum: a cuca já fora citada neste blog pelo menos duas vezes: nesta crítica de concerto de setembro do ano passado e nesta outra do mês seguinte.
August Klughardt - Symphony No. 4; Three Pieces for Orchestra
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August KLUGHARDT (1847-1902)Symphony No.4 in C minor, Op.57 (1890) Three
Pieces for Orchestra, Op.87 (1901) Anhalt Philharmonic Orchestra,
DessauAntony Her...
Um comentário:
muito bom mesmo o concerto!
não sabia desse teu blog musical tche!
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